terça-feira, 18 de maio de 2010

O Último Homem Irritado - II

" O meu pai era um homem, como não há hoje " - olhou-me e mostrava os frágeis dentes, dentro da pele escamosa, presa como orvalho a uma folha morta - " A gente vivia aqui perto de Viseu, em Penedono, e eu lembro-me como uma vez andámos nos nossos cavalos e o meu pai me disse que sabia que eu fumava, ao que fumámos juntos. Mas claro, isto não é o importante, o importante foram as suas palavras: " Sabes, filho, aprecia as tuas lembranças, pois são elas que levas quando morreres. O material fica. "" ..- olhou o chão como se dele guardasse rancor. Continuou -" E eu não ouvi nunca nenhum filho da puta de padre, messias ou Deus dizendo este punhado de palavras. "
Pois eu estava certo que já as ouvira, e não somente uma vez. E à medida que a lua caía com uma professia vazia de emancipação, eu notava, que essa língua morta e irremediavelmente usada,brotava de tal modo absorta que se tornava entediante. E tudo isto porque nem ele, nem eu, naquele momento e naquele lugar, tínhamos alguma coisa. Não havia sequer um vidro que reflectisse a nossa imagem, nem sol que prostrasse a nossa sombra no chão. Como se pode pedir, em consciência, a quem nada tem, que nada tenha, senão com o intuíto de perder tempo ?
Ele benzeu-se quando a sua boca suja tomara a palavra de Deus, como se ele de facto existisse, ou pusesse a sua auto-estima à nossa consideração.

sábado, 15 de maio de 2010

O Último Homem Irritado - I

A conversa jazia morta entre nós. Fitávamos languidamente o céu mastigando o fantasma desta, um silêncio absurdo, enquanto nos tornávamos ao sol em fatalidade. O Correia desenvolvera o hábito de trincar os seus cigarros.
" O meu pai era um homem. " - tornou-se-me Correia, como que pedindo um fósforo - " Era, pois já nos deixou há oito anos, tristemente. "
Logicamente, nada disse, respeitando o silêncio que me caíra bem, como uma reflexão.
" E sabes, jovem ? Ensinou-me muitas coisas. Tanto que te digo, de homem que sou, para futuro homem que serás, certamente, com a benção de Nossa Senhora, e com todo o respeito e educação, que nas religiões, políticas e instituições, não há lugar para homens.. "
Andava à procura de um isqueiro no bolso do blazer, no momento em que parara. Eu dormia sobre a minha comiseração, noturna e tátil, e estava a medi-lo, a olhá-lo com os meus olhos e a ouvi-lo com os meus ouvidos, certo que o que tocava estava realmente ali, e que tudo era, não sagrado, mas anti-sagrado, mundano, tão pobre e irrefutavelmente errado como dois homens discutindo filosofia sobre uma ponte.
Tudo carecia de uma explicação : " Não, não há realmente. "

sábado, 8 de maio de 2010

Dia de Sol

as mulheres no rossio vendem flores
junto ao pátio da velha dona dores
e têm em separado todas as cores
todas elas brancas.

eu não estou a senti-lo, amor.

um homem surdo falou-me
mas eu estava mudo e coube-me
sinalar que o sol estava morno
e as nuvens secas.

eu não estou a senti-lo, amor.

o café da esquina faz o pão sem sal,
e vende-o mas suponho que não haja mal
até porque o melhor dos chás
é aquele que se bebe sem açucar.

eu não estou a senti-lo, amor.

caminhei junto ao mar, só para saber
que era um rio, e toquei-o para achar
nele apenas um charco de água.

não há como senti-lo, amor.

Paulo Oliveira

quarta-feira, 5 de maio de 2010

ela brilha como o sol,

ela brilha como o sol, e arde como um pinhal
na Austrália. ela está distante como as estrelas
e ondula como o mar. acredita, ela pode pegar
na escuridão da noite e pô-la no dia,
só para te fazer reconsiderar !

ela é louca como uma artista, e larga magia
dos seus cabelos quando abanam no ar.
tu sabes, ela é uma hipnotista de se olhar,
e é certo que te ponha de joelhos.

ela toma as concessões que prefere,
quando está cansada ou magra, sabes que o
mundo todo irá acabar. ou quando pegas
na mala e foges, ela tem o seu exército
no teu braço, para te agarrar.

não penses que podes escapar,
não penses que vais ter êxito,
porque o vês nas suas íris,
e não penses que a vais deixar
de amar, quando vês o seu lenço,
com mais cores que o arco-íris.

quando tu tornas os teus olhos sérios,
ou viris, e tentas não tomar como verdade
o que ela diz; repara, homem!, que ela é
toda a tua liberdade. e não vais ser mais
que os cães que comem o que lhes é
arremessado.

em sinceridade, tens o coração podre
e ainda assim estás vilmente apaixonado.
e não é do teu agrado, mas ela é a colectora
dos juros que te persegue e invade o teu espaço.

e não tentes esconder nunca
o teu maço na tua gamela.
tu sabes, que mesmo sem
fumar qualquer cigarro,
a tua cabeça é dela.
invariavelmente, vais
querer
passar a noite com ela.

Paulo Oliveira

O Lamento

quando a vida corre bem sobre as luzes de Viseu
o que foi, não passou e não é mau nem é bom;
é veneno.

esse papel amordaçado que eles pisam era meu
mas eu não o deitei fora por ser obsceno;
tudo o que eu escrevi era som.

quantas vezes eu disse aos ventos, para me levarem
a ver o mar, para me deitarem sobre os fenos;
porque eu sou do céu, e as estrelas, eu duvido que
elas andem a bolsar os seus cabelos.

Paulo Oliveira