sábado, 20 de março de 2010

Chuva Inútil

o fio do rio trazia ramos finos como veias
esquecidos pela tempestade ocorrida
no dia anterior, quando ela disse que
as minhas palavras lhe abriam uma
estúpida ferida de uma estranha cor.
eu não podia saber o que me esperava
e até ela, que colhia as maçãs do pomar
com todo o seu amor, compreendia que
essa dor era dela, e eu só podia tentar
acalmá-la.

acordei com os meus olhos fitando o chão
e a única questão que me assombrava,
enquanto os camiões passavam na estrada.
os condutores obesos buzinavam e os sons
sobrevoavam a minha cabeça, mas o meu
coração é mole e o seu amor é tanto um pouco
obscuro. tomara que essa rua fosse de ouro,
e o meu coração fosse puro, mas a névoa é
espessa, e eu não espero por mais nada.

ela, que provavelmente só respira quando
a brisa sopra forte, não quis saber porque
tinha o meu pensamento e porque acabara
de lho dar. não se lembrou da minha morte
nem por momentos, e considerou por sorte
que eu tivesse parado de pensar.
e a verdade é que caminho e vou pensando
e tocando nas árvores, nas suas folhas e nos
seus frutos, e ainda sinto que no céu vão
sobrevoando, sobre mim, um punhado de
abutres.

os livros sobre metamorfoses iam ficando
molhados no meu bolso, pela chuva que cai,
e ninguém andava na rua pois mais certamente
é essa mesma idosa que segue o seu caminho núa.
este lugar nunca me fez bem e foi uma má estreia,
mas, a bem ver, não havia outra maneira de apreciar a lua.

ela chama-me de inútil, eu considero-a difícil,
a vida é recta porque ignora a curva.
antes, falava-lhe ternamente de amor e
de circunstâncias, e agora cito Neruda para a chuva.
não estou cheio de raiva, mas também não tenho
nenhuma paz, nem não há outro pedido que me
acesse e nem nada que me satisfaz, senão esta chuva,
tão alegre em me molhar, a arrastasse consigo sobre o rio,
e a levasse para o fundo do mar.

a verdade é que não não preciso de emoção
para sonhar, nem despedidas para chorar,
mas faria tudo para olhar, sobre o candeeiro
junto ao rio, a consideração dela enquanto
eu sorrisse, ao alto, fugindo, tão inútil
quanto ela !

Paulo Oliveira

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